TRABALHO EM CONDIÇÃO ANÁLOGA À DE ESCRAVO E RESPONSABILIDADE NA CADEIA PRODUTIVA
Para fins do presente estudo, o princípio constitucional da liberdade se reflete na prerrogativa por parte do trabalhador de celebrar por livre e espontânea vontade um contrato de trabalho e mantê-lo até quando o considerar apropriado.
A partir dessa premissa, a lei considera em condição análoga a de escravo o trabalhador submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a i) Trabalho forçado; ii) Jornada exaustiva; iii) Condição degradante de trabalho; iv) Restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; e v) Retenção no local de trabalho em razão de: a) Cerceamento do uso de qualquer meio de transporte; b) Manutenção de vigilância ostensiva; c) Apoderamento de documentos ou objetos pessoais.[1]
A lei também apresenta de maneira didática os conceitos de trabalho forçado (aquele exigido sob ameaça de sanção física ou psicológica e para o qual o trabalhador não tenha se oferecido ou no qual não deseje permanecer espontaneamente), jornada exaustiva (toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados a segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social) e condição degradante de trabalho (qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho. Por exemplo: ausência ou fornecimento de maneira insuficiente ou inadequada de água potável, alojamento e/ou instalações sanitárias).[2]
As ações fiscais de combate ao trabalho em condição análoga à de escravo são planejadas pelo Ministério do Trabalho, com a participação obrigatória de força policial e comunicação prévia a autoridades como Ministério Público do Trabalho (MPT), Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública da União (DPU), para que estas avaliem a conveniência de também integrarem a fiscalização.[3]
Uma vez constatado trabalho em condição análoga à de escravo, o Auditor-Fiscal do Trabalho (AFT) imediatamente determinará que o empregador adote, às suas expensas, as seguintes providências: i) a imediata cessação das atividades dos trabalhadores e das circunstâncias ou condutas que estejam determinando a submissão desses trabalhadores à condição análoga à de escravo; ii) a regularização e rescisão dos contratos de trabalho, com a apuração dos mesmos direitos devidos no caso de rescisão indireta; iii) o pagamento dos créditos trabalhistas por meio dos competentes Termos de Rescisão de Contrato de Trabalho; iv) O recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e da Contribuição Social correspondente; v) O retorno aos locais de origem daqueles trabalhadores recrutados fora da localidade de prestação dos serviços; vi) o cumprimento das obrigações acessórias ao contrato de trabalho enquanto não tomadas todas as providências para regularização e recomposição dos direitos dos trabalhadores.
Se o empregador se recusar em cumprir o quanto determinado pelo AFT, este poderá oficiar à autoridade policial disponível e ao Ministério Público Federal, para que este adote as providências que considerar cabíveis quanto à responsabilização do empregador na esfera penal, uma vez que reduzir alguém à condição análoga a de escravo também é crime.[4]
Em paralelo às obrigações de fazer acima listadas, o AFT pode lavrar Auto(s) de Infração em face do empregador por descumprimento do artigo 444 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): tais processos administrativos terão prioridade da tramitação. [5]
Outra ferramenta importante que o Ministério do Trabalho possui no combate ao trabalho em condição análoga ao de escravo é a prerrogativa de incluir os empregadores condenados em primeira e segunda instâncias administrativas, ou mediante ordem judicial, na “lista suja do trabalho escravo”, de amplo acesso ao público em geral. O empregador permanece na lista por dois anos, salvo de aceitar celebrar Termo de Ajustamento de Conduta (TAC).[6]
Ainda na esfera jurídico-administrativa-trabalhista, o MPT pode instaurar Inquérito Civil Público e distribuir Ação Civil Pública em face do empregador, para obrigá-lo a não mais utilizar trabalho degradante. Vale registrar que a referida instituição possui um Grupo de Trabalho específico para lidar com o tema, o qual tem sido bastante ativo,[7] com foco especial em eventos que demandam grande número de trabalhadores.[8]
Verifica-se, assim, que existe amplo arcabouço jurídico e uma força-tarefa ampla por parte do poder público para identificar e sancionar o trabalho degradante que possa existir nos mais diversos ramos de atividade econômica, seja no meio urbano, rural ou doméstico.
Dessa forma, prevenir a caracterização de trabalho em condição degradante em qualquer elo da cadeia produtiva é a maneira mais eficaz e econômica para garantir que empresas não figurem em fiscalizações e investigações que venham a ter esse tema como objeto. A prevenção pode existir em diversas etapas do processo produtivo, conforme será abaixo identificado.
Em um primeiro momento, as empresas devem contar com um sólido processo de seleção e cadastro de novos fornecedores, com a sucessiva celebração de um robusto contrato de prestação de serviços, de maneira a garantir a contratação apenas de pessoas jurídicas idôneas e cumpridoras integrais das suas obrigações trabalhistas.
Ademais, todos os fornecedores recém-contratados devem passar por uma sessão de treinamento do código de ética e conduta da empresa contratante, e formalmente se comprometerem a cumpri-lo, sob pena de rescisão justificada do contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes.
Durante a vigência do contrato de prestação de serviços, é interessante que a empresa contratante possa fiscalizar o cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da empresa contratada, inclusive com o direito de retenção de pagamento da nota fiscal devida à contratada até a apresentação das evidências solicitadas.
* * *
O escritório Françolin, Cury, Alouche e Ramos Advogados possui vasta experiência no assessoramento, consultivo e contencioso, de matérias que envolvem o direito do trabalho, colocando-se à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos complementares acerca do assunto abordado neste artigo.
[1] Cf. Portaria 1293, de 2 de dezembro de 2017, do Ministério do Trabalho. Disponível em: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=29/12/2017&jornal=515&pagina=186&totalArquivos=204
[2] Outros exemplos práticos podem ser encontrados no Anexo I da Instrução Normativa SIT 139/2018. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/2075837/do1-2018-01-24-instrucao-normativa-n-139-de-22-de-janeiro-de-2018-2075833
[3] Id. Ibid.
[4] Cf. artigo 149 do Código Penal.
[5] Cf. artigo 25 da Instrução Normativa SIT 139/2018.
[6] https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Agosto/empregador-que-indenizar-trabalhadores-nao-integrara-a-201clista-suja201d-do-trabalho-analogo-a-escravidao#:~:text=Os%20empregadores%20permanecem%20na%20%E2%80%9CLista,financeiro%20para%20gerenciamento%20de%20risco.
[7] De acordo com notícia publicada, o MPT participou de 255 operações de combate ao trabalho escravo em 2023. Também no mesmo ano, o MPT firmou 218 termos de ajuste de conduta (TACs), ajuizou 19 ações civis públicas e garantiu aos trabalhadores R$ 9,7 milhões em indenizações por dano moral coletivo. Entre os ramos de atividade com maior quantidade de trabalhadores resgatados estão cultivo de café e cana-de-açúcar. https://www.prt3.mpt.mp.br/procuradorias/prt-belohorizonte/2949-trabalho-escravo-3-190-vitimas-foram-resgatadas-em-2023
[8][8] Conforme exemplifica a seguinte notícia: https://www.prt1.mpt.mp.br/informe-se/noticias-do-mpt-rj/2490-forca-tarefa-resgata-14-trabalhadores-submetidos-a-trabalho-escravo-no-rock-in-rio-2024