O JULGAMENTO DO STF ACERCA DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 19 DO MARCO CIVIL DA INTERNET (LEI N. 12.965/14)
Após quase 11 (onze) anos de vigência do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965, de 23 de abril de 2014), o Supremo Tribunal Federal (STF) está se debruçando acerca da constitucionalidade do artigo 19 da referida lei, que dispõe que provedores, websites e gestores de redes sociais só serão responsabilizados civilmente por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros se descumprir ordem judicial prévia e específica de exclusão de conteúdo.
Os recursos extraordinários representativos da controvérsia são os Recursos Extraordinários n. 1037396 e 1057258, interpostos pelo Facebook e pelo Google, respectivamente, os quais, em sessão de julgamento realizada em 11.12.2024, foram objeto de pedido de vista pelo Ministro Luís Roberto Barroso, após voto dos Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, no sentido de negar provimento aos recursos.
O que se verifica por meio dos votos já proferidos, é que o STF está se inclinando para o reconhecimento da inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, ou seja, pela impossibilidade de responsabilização dos provedores de internet apenas em casos de descumprimento de ordem judicial.
Embora a questão da responsabilização civil dos provedores de serviços de internet, no que se refere à remoção de conteúdo ilícito, tenha sido positivada pelo Marco Civil da Internet, a matéria já vinha sendo debatida pela jurisprudência há muito tempo, dado o papel fundamental que a internet assumiu no mundo contemporâneo e o seu reflexo em importantes princípios constitucionais.
O que se verifica, portanto, é que o pano de fundo desta controvérsia consiste na colisão entre importantes princípios constitucionais: de um lado a dignidade da pessoa humana e a proteção aos direitos da personalidade e de outro a liberdade de expressão, a livre manifestação do pensamento e o livre acesso à informação e à reserva de jurisdição, conforme acórdão proferido nos autos do RE 1037396, que, por maioria, reputou constitucional a questão e reconheceu a existência de repercussão geral da questão suscitada.
Como muito bem colocado por Flavio Tartuce ao tratar do tema responsabilidade civil na internet[1], antes do advento do Marco Civil da Internet, muitos tribunais estaduais, ao aplicarem o parágrafo único do artigo 927 do Código Civil, entendiam que a responsabilidade das mantenedoras dos sites de relacionamento era objetiva, isto é, independente de culpa do agente, em razão dos graves danos à personalidade[2].
Fazendo um contraponto a este entendimento, ressalta que o sistema europeu traz conclusão diversa ao entender pela ausência de um dever geral de vigilância[3], “prevendo que os prestadores intermediários de serviços em rede não estão sujeitos a uma obrigação geral de verificar informações que transmitem ou armazenam ou de investigar eventuais ilícitos praticados nos seus ambientes”. O entendimento aqui, portanto, é da verificação da responsabilidade subjetiva, fundamentada na culpa.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), antes do advento do Marco Civil da Internet, proferiu julgados para ambos os lados. Ora adotando o posicionamento europeu, ao entender que “o dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/2002”[4], ora reconhecendo a responsabilidade objetiva, com base no Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078/90).
E o Marco Civil da Internet, ao positivar a questão, estabeleceu que o provedor de internet não pode ser obrigado à fiscalização prévia das informações postadas virtualmente por terceiros, devendo ser responsabilizado apenas na hipótese de não retirar o conteúdo ofensivo, após notificado judicialmente.
Privilegiou-se, então, o princípio constitucional da liberdade de expressão e da liberdade de pensamento – amparando os interesses dos provedores de internet – em detrimento dos princípios da dignidade da pessoa humana e a proteção aos direitos da personalidade.
Todavia, o que se verifica com o julgamento em andamento dos recursos extraordinários acima mencionados, com repercussão geral reconhecida, é que, ao se questionar a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet e, de acordo com os votos já proferidos, o STF caminha na direção das tendências mais atuais da responsabilidade civil, que não está mais pautada unicamente na ilicitude e na busca por um responsável, mas sim com a preocupação com a prevenção e reparação dos danos, em observância ao movimento de constitucionalização e de eficácia horizontal dos direitos fundamentais[5].
Nestes termos, “a prosperar tal tese, e reconhecido por inconstitucional o dispositivo, abre-se caminho amplo para que seja ressuscitada a posição pretoriana anterior e, pois, reconhecida a responsabilidade objetiva dos provedores na remoção de conteúdo”[6].
Como visto, o tema ganhou relevância no cenário brasileiro em virtude do julgamento do STF. Entretanto, a controvérsia ganhou ainda mais força com a recente publicação de Mark Zuckerberg[7], CEO da Meta (empresa que administra big techs, tais como Facebook, Instagram e WhatsApp), que anunciou uma mudança significativa nas políticas de moderação de conteúdo de tais rede.
Segundo as palavras do CEO, a Meta não realizará mais uma verificação de fatos feitas por terceiros, ferramenta pela qual moderava a circulação de notícias falsas e de conteúdo violento. Tal posicionamento foi justificado em virtude de uma “censura excessiva de conteúdo legítimo” e “necessária valorização da liberdade de expressão”.
Em outras palavras, tal posicionamento contraria de forma direta a tendência que tem se consolidado no julgamento em andamento do STF.
Feitas estas ponderações, resta aguardar a conclusão do julgamento pelo STF, que, qualquer que seja o resultado, impactará de forma direta nas relações sociais, comerciais e jurídicas. Da mesma forma, será necessário analisar de que forma o recente posicionamento da Meta vai impactar na própria conclusão do julgamento pelo STF.
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[1] TARTUCE, Flávio. Manual de Responsabilidade Civil. São Paulo: Método, 2018, pp. 1.363/1.379.
[2] TJMG, Apelação Cível n. 1.0024.08.041302-4/0011, 17ª Câmara Cível, Belo Horizonte, Rel. Des. Luciano Pinto, j. 18.12.2008, p. 06.03.2009); TJRS, Acórdão n. 70026684092, 9ª Câmara Cível, Caxias do Sul, Rel. Des. Tasso Caiubi Soares Delabary, j. 29.04.2009, p. 14.05.2009.
[3] Diretriz Europeia n. 00/31, in Tartuce, 2018, p. 1.367.
[4] STJ, Resp 1.186.616/MG, 3ª Turma, Rel. Nancy Andrighi, j. 23.08.2011, p. 31.08.2011.
[5] “Os direitos fundamentais, inicialmente voltados apenas para as relações entre o Estado e Particulares (eficácia vertical), passam a ser admitidos como critérios de solução aplicáveis também às relações entre particulares, independentemente de intermediação legislativa” (in, Novelino, p. 57).
[6] MAGRO, Américo Ribeiro e ANDRADE, Landolfo. Manual de Direito Digital. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 287.
[7] Realizada em 07.01.2025, em suas redes sociais.