A RESPONSABILIDADE CIVIL NA INDICAÇÃO DE INVESTIMENTOS
No famoso livro “O homem mais rico da Babilônia”, mencionado por inúmeros investidores de mercado de capitais e educadores da área financeira, há passagem em que se afirma (ou, melhor, recomenda-se): “Fale com pessoas sábias. Procure o conselho daqueles experientes com o manejo de dinheiro para o lucro; deixe sua sabedoria proteger sua riqueza de investimentos arriscados”.[1]
A busca por aconselhamento entre pessoas próximas em contexto privado e não profissional é, de fato, algo bastante comum. Recentemente, por exemplo, veio à lume notícia sobre acusação feita a importante investidor do mercado financeiro por prejuízos provenientes de dicas (aconselhamento) de investimentos em renda variável apresentadas a uma pessoa com quem, aparentemente, mantinha relação de proximidade.
Assim, relevante a seguinte indagação: simples aconselhamento de investimento no mercado mobiliário tem o condão de gerar responsabilidade civil, especialmente pelo aspecto extracontratual?
Não é novidade que a maioria dos brasileiros, historicamente, opta por investimentos de baixo risco, sendo considerados “conservadores”. Não à toa, um relatório divulgado pela Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (“ANBIMA”) apontou que a poupança “continua sendo o produto financeiro mais utilizado pelos brasileiros, com 26% de preferência” embora se tenha captado “um movimento importante de diversificação de carteira de investimentos”.[2]
Há uma trajetória de alta no percentual de brasileiros que investem em produtos financeiros. Consequentemente, percebeu-se um aumento de investidores que aplicam suas economias em ativos negociados na bolsa de valores brasileira (B3 S.A. – “B3”). O crescimento do interesse dos brasileiros na renda variável é notável. Segundo dados divulgados pela própria B3, “[…] o número de investidores pessoas físicas (PFs) na Bolsa de Valores (B3) atingiu 3.229.318, um crescimento de +92,1% em relação a 2019”. [3] Estima-se que esse número de investidores tenha saltado para 4,4 milhões ao final de 2022 e partido para 5 milhões, número este que se mantinha estável no início de 2024.[4]
Em outras palavras, parece correto dizer que o aumento de investidores em renda variável implicará, de modo diretamente proporcional, o incremento dos litígios relacionados a este mercado, compreendendo situações análogas à acima narrada, tendo, de um lado, um experiente investidor (aconselhador), de outro, alguém que com ele se aconselhou (aconselhado). Este fato é potencializado pelas novas tecnologias e novas formas de comunicação advindas com as redes sociais.
Em tal contexto, há de se diferenciar a figura do aconselhador, num contexto de relação não profissional,[5] com outras figuras do mercado financeiro, como o assessor de investimentos, o consultor de investimentos ou o analista de valores mobiliários.[6] A situação do aconselhador, no sentido aqui empregado, embora seja bastante diferente das demais acima mencionadas, numa situação concreta, poderá ser dificilmente identificada.
As atividades do assessor e do analista são regulamentadas pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM (respectivamente, art. 2º da Resolução CVM 178/2023 e 1º da Resolução CVM 20/2021). A figura do consultor de investimento é regulamentada pela Resolução 19/2021 da CVM. Diferentemente das outras figuras, o consultor, necessariamente, trabalha de modo independente, sem nenhum vínculo com alguma empresa ou instituição.
Em comum, todos estes sujeitos precisam obter credenciamento para o exercício de suas atividades na forma estabelecida pela CVM, entre outras qualificações previstas. Em outras palavras, o prévio credenciamento é pressuposto (prius) para o exercício de tais profissões e são exclusivas dos indivíduos que atendem às exigências da comissão.
No contexto do debate sobre a indicação de investimentos por influenciadores digitais, a CVM deixou claro que o caráter profissional da atividade restará caracterizado quando presentes os seguintes elementos: (i) habitualidade; (ii) benefícios, remunerações ou vantagens obtidas na oferta de recomendações, como cobrança de taxa de assinatura ou adesão; (iii) cobranças de mensalidades e anuidades do público; (iv) receitas indiretas recebidas em função do acesso de terceiros.[7]
No âmbito profissional, ganha relevância o tipo de obrigação assumida, se de resultado ou de meio – a forma de veiculação da informação será essencial para se aferir qual o compromisso assumido e a viabilidade de responsabilização do agente. [8]
Há, portanto, que se separar as situações em que (i) existe um aconselhamento em razão de uma relação de proximidade entre aconselhador e aconselhado, por motivos afetivos, familiares ou laços de amizade, e (ii) há a prestação de um serviço tocante à prestação de informações ou mesmo indicação de produtos mobiliários, remunerado de modo direto ou indireto. [9]
A priori, não parece que, na primeira situação, haverá a criação de algum vínculo jurídico capaz de gerar responsabilização do aconselhador, caso seja feito um aconselhamento – de boa-fé – e, por algum motivo, este não gere os resultados esperados. O aconselhador não precisa se enquadrar nos exigentes parâmetros estabelecidos pela CVM, não será remunerado pelo conselho dado e não assumirá qualquer responsabilidade.
Como se sabe, a responsabilidade é sanção e regra jurídica secundária, no sentido de que estabelece um reforço ao cumprimento de preceito jurídico pré-existente a ela, que exija um comportamento específico do seu destinatário. [10] Por conseguinte, inexistindo dever ou obrigação precedente, descumprido(a) por culpa, dolo ou nexo de imputabilidade, não haverá o enquadramento do ato como ilícito passível de indenização, à luz dos art. 186 e 927 do Código Civil.
Inexistindo qualquer dever pré-existente, de rigor o reconhecimento de ausência de responsabilidade, como já decidido em casos análogos:
“APELAÇÃO CÍVEL. CORRETAGEM. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. MERCADO DE AÇÕES. PERDAS E DANOS. REVELIA. PRESUNÇÃO RELATIVA. ÔNUS DA PROVA. […] AUSÊNCIA DE OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR POR PARTE DA EMPRESA. INFORMAÇÃO QUANTO AOS RISCOS DAS OPERAÇÕES COMPROVADA. NEGÓCIO DE RISCO, AO QUAL SE SUBMETE O INVESTIDOR, POR OPÇÃO. Ausência de elementos de provas de que o preposto da ré tenha excedido seus poderes, ou seja, prestando-lhe serviços de consultoria de investimento e administração da carteira de ações à autora, para o que não teria autorização da CVM. Não há como evidenciar um prejuízo ao demandante a justificar as indenizações postuladas. O mercado mobiliário é um mercado de risco, no qual inexiste a certeza do lucro, ao qual se submeteu a autora, por opção, restando afastada a alegação de ausência de informações quantos aos riscos das operações realizadas pela apelante. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (TJRS; Apelação Cível nº 70054369632, rel. des. Ana Beatriz Iser, Décima Quinta Câmara Cível, j. 12.6.2013 – sem ênfase no original).
Portanto, a simples manifestação de opinião acerca de investimento em valores mobiliários, consubstanciada sob a forma de dica, em âmbito privado e oferecida sem nota de profissionalidade, não implica, a priori, responsabilidade civil. Naturalmente, o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade haverá de ser analisado caso a caso.
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Renato José Cury. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Presidente da AASP no biênio 2019-2020. Sócio em Françolin, Cury, Alouche e Ramos Advogados. E-mail: rcury@fcaradv.com.br.
Pedro Augusto de Jesus. Doutor em Direito Processual (USP). Advogado em Françolin, Cury, Alouche e Ramos Advogados. E-mail: pjesus@fcaradv.com.br.
Laiz Patricio. Graduada pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Pós-graduada em Direito Empresarial na PUC. Advogada em Françolin, Cury, Alouche e Ramos Advogados. E-mail: lpatricio@fcaradv.com.br.
[1] Tradução livre do seguinte trecho: “Talk with wise people. Seek the advice of those experiencied in handling money for profit; let their wisom protect your treasure from unsafe investments” (CLASON, George S. The richest man in Babylon. Atual. Luke Wilson. Torrance-Califórnia: Modern Language Press, 2022, posição 251, ebook Kindle).
[2] Disponível em: https://www.anbima.com.br/pt_br/especial/raio-x-do-investidor-2023.htm. Acesso em 24.4.2024, às 11:37.
[3] Disponível em: https://conteudos.xpi.com.br/acoes/relatorios/pessoas-fisicas-na-bolsa-mercado-de-acoes-brasileiro-em-continua-evolucao/. Acesso: 24.4.2024, às 11:42.
[4] Disponível em: https://www.b3.com.br/pt_br/noticias/numero-de-investidores-em-renda-fixa-alcanca-17-milhoes-de-pessoas-em-2023-na-b3.htm#:~:text=S%C3%A3o%2011%2C7%20milh%C3%B5es%20de,mediano%20de%20R%24%206%20mil. Acesso: 24.4.2024, às 11:47.
[5] Também chamado de agente autônomo de investimentos. Não permite recomendação de investimentos, mas somente prestação de auxílio na sua escolha. A habilitação deverá ocorrer por meio do exame de qualificação da Associação Nacional das Corretoras de Valores (“ANCORD”) e ter cadastro na CVM.
[6] Disponível em: https://blog.xpeducacao.com.br/diferenca-entre-consultor-e-assessor-de-investimentos/?gad_source=1&gclid=CjwKCAjw26KxBhBDEiwAu6KXt5QsOu6zT171CqSfz8AucmxJoHf0GRZ142SV_yYzBNHZHFA6M-MRFxoC320QAvD_BwE. Acesso: 24.4.2024, às 14:23; Disponível em: https://www.agazeta.com.br/dinheiro/lelio-monteiro/a-diferenca-entre-gestor-consultor-assessor-e-analista-de-investimentos-0522. Acesso: 24.4.2024, às 14:45.
[7] Disponível em: https://www.gov.br/cvm/pt-br/assuntos/noticias/area-tecnica-da-cvm-esclarece-duvidas-sobre-atuacao-de-influenciadores-que-recomendam-investimentos-dddc1973876d4cc78c734b8ceeaaa740. Acesso: 24.4.2024, às 14:48.
[8] “APELAÇÃO. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE PERDAS E DANOS CC. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. INVESTIMENTO EM CRIPTOATIVOS. […] Inexistência. Responsabilização subjetiva dos profissionais liberais (verificação de culpa) inserta no art. 14 § 4º do Código de Defesa do Consumidor. Obrigação de meio, e não de resultado. Risco de prejuízo inerente à atividade de investimentos financeiros. Profissionais que cumpriram com as atividades para as quais foram contratados com comprovada diligência e ética profissional, fornecendo as informações e apoio necessário aos Autores. […]” (TJSP; Apelação 1006059-85.2022.8.26.0011; rel. des. Berenice Marcondes Cesar; 28ª Câmara de Direito Privado; j. 10.10.2023 – sem ênfase no original)
[9] As recomendações podem ser entendidas como a prestação de um serviço personalizado, remunerado direta ou indiretamente, para um público em geral ou de forma específica, após a análise individual do perfil do investidor, com a indicação dos melhores ativos, além de levar em consideração a intenção e objetivos, a curto e longo prazo. Já a dica é algo informal, mais genérico, sem a realização de qualquer análise do perfil do investidor, geralmente baseada na opinião pessoal do próprio emissor, levando em consideração investimentos por ele realizados ou baseados em um estudo do mercado, sem qualquer contrapartida, direta ou indireta.
[10] “No campo do direito material, existe a “responsabilidade civil”, que constitui “sanção” em face daquele que descumprir uma obrigação ou um dever jurídico no ambiente do direito privado, impondo ao lesante uma obrigação de restituir, ressarcir ou reparar o lesado. Trata-se de sanção, pois é uma resposta do ordenamento jurídico à infração de uma norma jurídica” (JESUS, Pedro Augusto de. Responsáveis patrimoniais e participação na execução. Revista de Processo. vol. 329. ano 47. p. 187-226. São Paulo: Revista dos Tribunais, julho 2022).