35 ANOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E SUA EVOLUÇÃO INTERPRETATIVA
No ano de 2025, comemora-se os 35 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Promulgado em 1990 pela Lei nº 8.078, o CDC representou um marco na proteção nos direitos dos consumidores no Brasil, estabelecendo um regime jurídico de proteção e defesa contra práticas abusivas e desleais disseminadas no mercado de consumo. Desde a entrada em vigor, sua interpretação evoluiu significativamente, refletindo as mudanças sociais, econômicas e tecnológicas que impactaram as relações de consumo.
Inicialmente, toda a interpretação e aplicação do CDC era voltada essencialmente à proteção irrestrita do consumidor, tudo de maneira a favorecer a parte hipossuficiente da relação. Esse viés protecionista advinha da necessidade em se estabelecer um equilíbrio nas relações de consumo, onde os fornecedores que detinham informações privilegiadas e maior poder de mercado muitas vezes abusavam da sua condição de hiper suficientes. Na prática, isso se traduzia, por exemplo, no reconhecimento da abusividade de determinadas disposições contratuais e na imposição de sanções rigorosas contra os fornecedores.
No entanto, com a evolução do tempo, ampliação do mercado, amadurecimento das relações de consumo decorrente de uma conscientização por parte dos fornecedores, verificou-se, especialmente por parte do Poder Judiciário, uma interpretação e aplicação mais equilibrada das disposições do CDC, em estrita observância ao princípio da harmonização das relações de consumo (artigo 4º, III da lei). A aplicação desse princípio trouxe maior segurança jurídica ao mercado, garantindo que consumidores fossem protegidos sem inviabilizar a atividade econômica dos fornecedores.
O artigo 4º do CDC preconiza a harmonização dos interesses entre consumidores e fornecedores com base na boa-fé e no equilíbrio das relações, enquanto o artigo 6º destaca o direito básico do consumidor à prevenção e reparação de danos. Assim, a evolução da jurisprudência passou a considerar a responsabilidade do consumidor nas suas decisões de consumo, incentivando uma conduta mais consciente e informada.
Essa mudança não ocorreu apenas no âmbito judicial, mas também no comportamento das empresas. Os fornecedores passaram a adotar um comportamento mais alinhado aos ditames do CDC, investindo em compliance consumerista e mecanismos de resolução de conflitos, como os canais de atendimento e plataformas digitais de reclamação.
Outra mudança relevante na interpretação jurídica do CDC recai sobre a evolução do instituto do recall (campanhas de recolhimento), regulado pelo art. 10 do CDC. O que, a princípio, poderia ser interpretado – equivocadamente – como um reconhecimento de um vício de produto ou serviço, ou uma situação que poderia prejudicar a reputação da companhia, hoje é visto com “bons olhos”, o que foi impulsionado por um entendimento exarado pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”). Alguns fornecedores chegaram a ser punidos pelas autoridades de defesa do consumidor pelo simples fato de lançarem uma campanha de recall.
Com efeito, ao julgar o Recurso Especial nº 1.838.184/RS, o STJ destacou que o fornecedor pode se valer do instituto do recall, previsto no art. 10, § 1º, do CDC, para cumprir com o dever de informação e preservar a integridade física de seus consumidores.
Da mesma forma, em outro julgado do e. STJ, foi assentado que “o recall não é, necessariamente, confissão de lesividade do produto, tampouco de todos os produtos do modelo indicado na chamada” (STJ – AREsp: 2288613, Relator: MARIA ISABEL GALLOTTI, Data de Publicação: 04/07/2023).
Por sua vez, ao julgar o AREsp 2064419[1], restou consignado que “o recall, dentro de uma sociedade de consumo de massa, busca conciliar, de um lado, a produção em escala de produtos, na qual, ainda que se empregue as melhores práticas, não está imune de produzir itens com algum grau de imperfeição, e, de outro, a segurança e o bem-estar do consumidor“.
Todas essas adaptações foram impulsionadas tanto pela fiscalização dos órgãos de defesa do consumidor quanto pela própria conscientização do mercado sobre a importância de uma relação transparente e duradoura com os consumidores, um dever de segurança dos fornecedores. Esses diferentes pontos de vista foram essenciais para se alcançar um equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Agora, com o avanço da tecnologia e da inteligência artificial (IA), as relações de consumo estão novamente passando por uma transformação significativa. O uso de IA na oferta de serviços, atendimento ao consumidor e decisões automatizadas de crédito levanta novos desafios regulatórios e éticos. Com isso, surgem questões como a responsabilidade pelo uso de algoritmos, o tratamento de dados sensíveis e a necessidade de garantir transparência na tomada de decisões automatizadas.
O CDC, enquanto norma principiológica, fornece uma base sólida para a proteção do consumidor, mas precisará de atualizações para contemplar essas novas realidades. A utilização crescente de big data e IA nas relações de consumo exige regulamentação específica para evitar práticas discriminatórias e garantir a privacidade e segurança dos consumidores.
Ademais, é importante destacar que a transparência e a educação do consumidor serão fundamentais nessa nova era. O acesso a informações claras sobre políticas de privacidade e critérios de decisão automatizada são elementos essenciais para que o consumidor possa exercer plenamente seus direitos. Sem isso, há o risco de se criar um tipo de vulnerabilidade, em que consumidores se vejam à mercê de decisões algorítmicas sem compreender os impactos dessas escolhas.
A evolução do CDC demonstra a importância de um direito do consumidor dinâmico, que se adapta às mudanças sociais e tecnológicas sem comprometer a segurança jurídica. O desafio para os próximos anos é garantir que essa modernização ocorra de forma equilibrada, assegurando tanto a proteção dos consumidores quanto a viabilidade das inovações empresariais. Para isso, é necessário um esforço conjunto entre Estado, iniciativa privada e sociedade civil, visando fortalecer um mercado justo e sustentável para todas as partes envolvidas.
* * *
[1] STJ – AREsp: 2064419 DF 2022/0027938-0, Relator: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Publicação: DJ 31/08/202